Pesquisar este blog

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

não sabe por que chora

olhei  a nuvem
suas reentrâncias cinzentas
os carinhos do sol nas costas
das brancas ondas 
casta como uma freira
ela me olha de gente
eu de nuvem
ela não sabe por que chove
de repente escurece
de repente ilumina
insustentável leveza
emoção desmedida
que do alto desaba


domingo, 28 de dezembro de 2014

A noite que dormi com Leon Trotsky

Eu havia buscado aquela rara edição do poeta Paulo Leminski em todas as livrarias e sebos, de todas as cidades por onde havia passado. Eu precisava fechar o ciclo das biografias escritas por ele, que se inicia com o poeta-samurai japonês Matsuo Basho. Faltava apenas aquela do Leon Trotsky.  Enganam-se aqueles que acham que eu seja trotskista ou comunista. Tive alguns colegas de faculdade que eram, e ouvia deles as histórias dos grupos de resistência à ditadura. De outros colegas ouvia que os trotkistas estão sempre se dividindo até a unidade.

Meu interesse era meramente literário e menos até: era o interesse por um jeito de escrever específico de um poeta curitibano de origem polonesa. Por anos, a busca foi em vão. Desisti? Ao contrário, isso aguçava ainda mais o mistério, não pela figura histórica de Leon cujo os contornos básicos eu sabia de ouvido, ou seja, o mínimo para ter cultura geral do que foi a revolução comunista na Rússia. Após ler o biografia sobre Jesus Cristo meu interesse por esta escrita aumentou. O poliglota brazuca-polaco havia aprendido sânscrito para ler no original os evangelhos apócrifos. Leminsky sabia criar inusitadas pontes de reflexão entre diferentes conhecimentos e fontes bibliográficas, de modo tal, que seriam levianas se fossem feitas por outro, mas com ele e através dele a prosa ganhava tons febris e cortantes sem perder o vigor do contar uma boa história. Nada me impediria de chegar até o livrinho sobre o líder revolucionário russo do levante bolchevique de fevereiro de 1917. 

Não lembro o dia, mas este dia, e para ser exato, esta noite chegou.  Eu havia retornado de um período de estudos na Universidade da Califórnia, e voltei a morar na mesma cidade onde havia começado a graduação em engenharia. Não sei quem me convidou para aquela festa no centro da cidade, mas o apartamento ficava a uma distância a pé do famoso Bar da Linguiça, o último que fechava nesta cidade do interior paulista. Quem havia me convidado? Alguém do sindicato dos trabalhadores da universidade com quem havia colaborado em mais de uma greve por melhores salários de professores, e funcionários? Alguém da associação dos pós-graduandos? Não sei mas ao entrar na festa, encontrei uma sala escura, barulhenta e cheia de gente, tocava um "rock and roll" bem alto, e eu busquei a varanda para tomar um ar, uma luz e abrir os ouvidos. A varanda parecia o único lugar com  luz, e esta vinha da rua. No canto havia uma mulher de estatura acima da média e cabelos curtos que fumava seu cigarro. A luz refletia nas ondas de fumaça e iluminava seu rosto. Mal coloquei os olhos nela, ou na silhueta que a luz da rua me permitia ver, ela disse: “Quer conversar? Aqui não dá para conversar. Vamos ao bar na Linguiça”. 

O bar da linguiça é destes lugares antológicos que toda cidade tem. Era frequentado por travestis, policiais, e políticos de esquerda, e mais a esquerda da esquerda, e claro os trotskistas. A moça caminhava pela rua do meu lado esquerdo. Risonha, apresentou-se, disse o que fazia, era professora universitária. Eu estava buscando emprego. Ela era membro do comitê, do partido ou da brigada, ou do grupo de estudos trotskistas. Tinha um sorriso bonito, ria com o corpo todo, algo difícil de ver entre militantes sisudos preocupados com as condições objetivos de uma tomada de poder que viesse nos resgatar das iniquidades capitalistas. Um militante que risse desdenhava do sofrimento do povo, e era considerado pouco sério e preparado para os embates da luta de classes. Interessante notar que o mesmo raciocínio acontecia na cultura protestante dos Estados Unidos. Um dia compus um haikai, poema curto japonês, que tenta descrever o que é complexo e intrincado em poucas palavras, a respeito do preconceito capitalista contra os risonhos na liberal Califórnia:

“Be unhappy, be unhappy
If you sing at work
you will be arrested ”

"Pareça infeliz, pareça infeliz
Se cantarolares no trabalho
serás trancafiado"

Chegamos ao bar da linguiça às 2 horas da manhã, e este começava a receber os policiais militares que ali, pensei comigo, descansavam antes da próxima incursão pelas ruas e periferias. Havia também dois travestis na mesa ao lado da nossa. Já havia ido àquele bar  e confesso que não gostei da linguiça e nem do lugar. Comecei a pensar no porque não gostava daquele bar. Eu nunca tinha sido de nenhum grupo guiado por uma ideologia, ou visão da realidade estruturada, com explicações e respostas para as causas das mazelas sociais. Eu era da linha pragmática e criativa. Eu pensava na época: como universitário o que posso fazer? como posso contribuir? aonde posso influenciar? Mas eu respeitava muito aqueles grupos e suas ideologias, pois também intui que a realidade é complexa, e um mapa para explorá-la é necessário. Eu gosto de me orientar por mapas diferentes, que indicam os modos diferentes de chegar a lugares parecidos. 

Eu estava bebendo aquela conversa com ela, suas estratégias e táticas bem como a conjuntura internacional, nacional, e municipal. Uma mulher na política enfrenta além das mazelas sociais, as de gênero. Eu disse do meu interesse pelo camarada Leon. Não havia ali uma paquera declarada, nem um interesse sexual explicito. Havia um clima, mas eu não sabia muito bem aonde aquilo ia me levar. Mas o certo é que eu não queria que acabasse no bar da linguiça. Nestes momentos, eu gosto de silenciar as vozes, os ruídos, os barulhos para ler apenas as expressões do corpo. É um lapso de tempo em que me entrego à observação do outro, e que foi subitamente cortado pela pergunta: “Vamos para o meu apartamento?”. 

Havia muitos livros na casa dela. Quando acordei vi que as estantes repletas de livros ocupavam todas as paredes e iam até o teto. Em todos os cômodos inclusive dentro do quarto, onde acordei sonolento enquanto ela só de calcinha me mostrava um pouco das riquezas de sua biblioteca. Eu estava na verdade em seu escritório de trabalho, seu “aparelho subversivo”. Ri sozinho, internamente e sem graça, desse jargão do universo conservador que marcou a repressão militar aos partidos de esquerda a partir de 1964.  No meio daquela bela preleção semi-nua sobre os livros importantes a ler sobre Trotsky, minha cabeça de repente se levanta de um só tranco. Violentamente sento na cama.

“E tem esse livro aqui de um poeta que escreveu sobre Trotsky, um tal de Leminski”. Finalmente, eu estava em frente ao oásis de um livro só, que para mim representava o que havia de mais interessante na literatura brasileira, e que eu tanto buscará anos a fio. E continuou: “Você acha que eu vou ler um livro de um poeta brasileiro sobre o Trotsky?”. Eu fiquei sem palavras...a busca havia terminado. “Você conhece esse tal de Leminski?” Eu não conseguia falar, balbuciava silabas cortadas. “Você quer? Eu dou para você”. E atirou o livro entre as minhas pernas, quase acertando no meu saco. Eu não dizia palavra, meus olhos injetados de êxtase e espanto pareciam com os de um drogado prestes a sair da crise de abstinência. Em minhas mãos trêmulas, a biografia de Leon Trotsky
pousava como se fosse um pouco de água límpida num deserto de palavras arenosas. Com esforço consegui articular algumas palavras, que saíram completamente desnecessárias: “Estou à procura deste livro a anos”. Ela continuava a passar os olhos nos livros da estante, já vestida com uma camiseta, e falava agora dos livros que estava lendo. O sol batia forte nas ruas confusas daquele domingo. Me despedi dela, beijando-a longamente, no que pareceu uma jura de amor eterno. Peguei um ônibus na esquina e voei até minha casa para ler “Trotsky: a paixão segundo a revolução”. 

Devorei o livro com paixão. Ali estava o velho e bom Leminski, que havia morrido anos atrás de cirrose alcoólica, mas continuava vivo na sua prosa inusitada, vigorosa e criativa. O livro começa 1000 anos antes da revolução de fevereiro de 1917 numa Russia dominada pela invasão dos povos nórdicos e mongóis. E lendo o sonhado livro, entendi que as misturas culturais que forjaram a revolução comunista na Rússia marcaram o destino da revolução. A prosa poética do poeta curitibano tratava das razões profundas pelas quais as pessoas e os povos percebem a vida, e seus conflitos, de determinada maneira e não de outra. Fechei aquele domingo lento e soviético, dando um passo dialético rumo a minha revolução poética, e fiquei pensando se a trotskista com quem fiz um amor 
literário deu seu passo a frente, ou dois atrás me dando aquele livro. Será que um dia ela finalmente vai ler sobre a paixão de um poeta brasileiro por um intelectual russo que teve papel de destaque na revolução de 1917? Será que um dia ela vai entender o papel que teve na minha revolução poética, ou o papel da poesia em todas as revoluções políticas, sociais e estéticas?

OCF

Gastronomia e Poesia

Decisão tomada em família: será servida nos cafés da manhã a mais bela poesia desta e de outras terras Para harmonizar a novidade infinita d...